Guerra e sufrágio, quem liga
Como destruir Chesterton e o país das fadas em nome da ideologia
Há algo de estranho no fenômeno recente da proliferação de referências a Chesterton. Não que ele já não fosse célebre—sempre foi uma espécie de gigante benevolente passeando pelas colinas do pensamento, admirado até mesmo por figuras tão inesperadas quanto Gilberto Freyre. Dizem que o sociólogo, aquele mesmo das casas-grandes e senzalas, chegou a entreter a esperança de ver o inglês engajado na restauração do Império Brasileiro. A realidade não foi tão longe, mas, de certo modo, o feito de Chesterton foi ainda mais impressionante: ele encontrou um lar no coração do brasileiro médio, esse ser meio distraído quanto à própria história, mas sempre pronto a se encantar por um bom contador de histórias.
O curioso é que hoje ele não é apenas recomendado por católicos de sólida formação, mas é também esquadrinhado, retalhado e reciclado pelos mais variados tipos de influenciadores—muitos dos quais nunca teriam coragem de acompanhá-lo até a última linha de um de seus ensaios. Isso, por si só, não chega a ser uma tragédia. Chesterton nunca foi dado a trincheiras intransponíveis; pelo contrário, alguns de seus melhores amigos estavam entre os mais ferrenhos opositores de suas ideias, como Bernard Shaw, com quem partilhava ironias e tabernas voadoras.
O problema, ele mesmo nos adverte, não está no diálogo, mas nesse estranho costume moderno de arrancar as virtudes do seu habitat natural e lançá-las por aí gritando upa upa cavalinho. E se há um pecado imperdoável, um crime sem absolvição, uma heresia que faria o Grande Inquisidor se defenestrar, é o crime da fragmentação do pensamento de Chesterton.
Recortar e colar suas histórias em um panfleto seria como tentar capturar um vendaval com uma garrafa. Minto (acabo de blasfemar), tentar capturá-lo numa garrafa seria provavelmente possível, ele jamais recusaria a oportunidade de testar um bom folclore. O que eu tentava dizer é que a ética do país das fadas é uma história cujos personagens e narrativa fantásticas não sobrevivem fora da sua terra natal.
Tomemos, por exemplo, sua crítica ao movimento sufragista de sua época. Nela, Chesterton não atacava apenas uma corrente política, ele criticava uma visão de mundo nascida das sombras longas do puritanismo calvinista, que convertera o lar em uma penitência perpétua e a sociedade em uma máquina cega e impessoal. Ele não zombava das mulheres que buscavam emancipação; ele zombava de um mundo inglês Whig que, durante séculos, ensinara que as qualidades naturais femininas eram fraquezas, que o Eterno Feminino era uma prisão e que a única maneira de uma mulher ser livre era renunciando a si mesma. Zombava, portanto, das mulheres que acreditaram nestas mentiras contadas pelos homens de letras.
E foi justamente essa observação que lhe permitiu enxergar as raízes primevas do feminismo, não em seus slogans ou manifestações, mas nas fissuras profundas da civilização inglesa que o formou.
Ele percebeu que o sufrágio feminino não era um mero ajuste dentro da ordem social, mas uma revolução. E uma revolução, como bem sabemos, exige mais do que votos—exige pólvora, barricadas e um desejo sincero de destronar reis e deuses. A questão, portanto, era mais profunda que “direitos civis”. E as sufragistas, ainda que destemidas, ainda que eloquentes, se pegassem em armas e fuzis para depor o "patriarcado", certamente perderiam. Elas perderiam, veja bem, não por uma falta de vontade ou disposição, como acusavam certas visões limitadas. Pelo contrário, caso fosse lhes dada a oportunidade, seria provável que muitas estivessem dispostas a vestir o uniforme, como algumas soviéticas eventualmente o fizeram.
Mas mesmo que conseguissem vertir o uniforme, ele continua, sua revolução só seria possível se fossem muitas. De forma que o feminismo não morreria, no final das contas, por falta de militância, mas pela mais trágica das ilusões: a pretensão de ser universal.
Sim, mulheres compõem metade da humanidade; e isso poderia sugerir, ao menos para os mais otimistas, que elas poderiam, juntas, inverter a ordem das coisas. Mas elas nunca estiveram “juntas”. Desde o início, havia mulheres que não se reconheciam no discurso feminista, mulheres que viam no lar, na maternidade, na vida tradicional, não uma prisão, mas um refúgio. A revolução, ao contrário do que pretendiam suas teóricas, não tinha um exército homogêneo; era uma casa dividida contra si mesma.
Chesterton antecipou, com quase um século de antecedência, o que Judith Butler viria a denunciar: o feminismo tropeçaria no fato de que "mulheres" não constituem uma identidade comum, muito menos universal. Isto sempre foi uma fábula liberal. Nosso mestre do paradoxo, portanto, expôs para aqueles que sabem ler a fragilidade do fio metafísico que conduzia o feminismo. Confiou a nós esta dica, na expectativa que fizéssemos dela mais do que uma fábula.
Em mãos modernas, que lamentável, sua exposição foi interpretada da forma mais xexelenta, mais desgraciosa e mais grotescamente míope possível. A maior expoente do antifeminismo dos últimos cinquenta anos reduziu a análise profunda do gordinho a um silogismo tosco: afirmou que ele estaria argumentando que o sufrágio feminino era impossível porque as mulheres não estariam dispostas a lutar na guerra:
Ao receberem o direito ao voto sem a obrigação de alistamento, as mulheres não conquistaram direitos iguais, mas sim "direitos desiguais", o que também podemos chamar de "privilégio". Elas passaram a ter a oportunidade de escolher um governante sem ter a obrigação de apoiar seu governo dando a vida pela pátria ou entrando em guerras que ele viesse a começar.
O escritor católico G.K. Chesterton escreveu um subcapítulo intitulado A sufragista amilitar, em referência a essa discrepância de direitos. Para ele, as mulheres queriam um direito pelo qual não estavam dispostas a lutar e morrer e, depois de conquistá-lo, continuariam indispostas a dar a vida pela pátria ou pelo primeiro-ministro que elegessem1.
Acho que preciso reforçar que em nenhum momento Chesterton fez este tipo de associação estapafúrdia. Nunca disse que as sufragistas não estavam dispostas a lutar - disse que perderiam. E, santo Deus, nunca subordinou o “direito ao voto” à distintivos e guerras imperiais.
E para além dessa distorção óbvia do próprio texto—que ninguém, jamais, de boa-fé, obliteraria—está a verdade central: para Chesterton, a democracia não era uma questão de urnas e alistamento, mas uma questão de continuidade. “Tradição”, ele escreve, “significa dar votos à mais obscura de todas as classes: nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia daqueles que meramente têm a sorte de estar caminhando por aí.”
Sem o conceito central de democracia, a ética do país das fadas é arrancada do solo em que foi plantada, como se pudesse sobreviver ao ser transplantada para um vaso de plástico da moda. Ideias são truncadas, pensamentos são dobrados e recortados como papel barato, adaptados para caberem nas molduras de discursos vazios, onde Chesterton, que tanto zombava dos reducionismos, é reduzido a um mascote ideológico.
Para manter viva a ética do país das fadas, não é necessário ajoelhar-se perante um altar, nem recitar catecismos. Quando escreveu O que há de errado com o mundo, o próprio Chesterton ainda caminhava às margens do Tibre, sem ainda mergulhar nele. O único requisito para compreender esse mundo mágico é possuir ao menos duas pernas – ou até menos, já que nesse país os animais falam e, às vezes, fazem mais sentido do que os homens.
E, no entanto, quão divertida é a dança da ironia! Pois não foi um tradicionalista severo que captou melhor a crítica de Chesterton ao sufrágio. Nem um conservador de poltrona, nem uma antifeminista raivosa (au, au). Não! Quem enxergou com mais clareza essa estranha fábula política foi uma pós-moderna foucaultiana. O país das fadas tem mesmo um senso de humor peculiar.
Ana Campagnolo, Feminismo: perversão e subversão, 2019.
Depois que li esse novo texto, voltei ao Sacerdócio da Estupidez e, com o livro da Campagnolo em mãos, dei uma olhada nas referências bibliográficas e indicações de livros. A primeira coisa que me impressionou foi que, realmente, ao realizar a contagem de livros *referências primárias* o total foram de míseros 8 escritos feministas. Minha segunda surpresa (a maior de todas, que serviu apenas para provar que a autora de fato não leu todos os livros que recomendou), foi encontrar o barão Julius Evola (um dos expoentes do perenialismo, embora há perenialistas que discordem e apenas o considerem um autor da gnose) entre os livros anti-feministas. Foi citado o "A metafísica do sexo" que traz uma visão mística dos arquétipos de mulher, mas nada necessariamente sobre antifeminismo.
👏👏👏