Abro a sessão de comentários do meu canal no YouTube com o vago pressentimento de que deveria ter feito meu testamento antes. A quarta-feira está iluminada pelo sol, e minhas orações das Vésperas ainda ressoam. Mas hoje, decido-me, quero me irritar. E não me decepciono. Nunca me decepcionarei com a sessão de comentários do meu canal no YouTube.
Ali, entre exortações ininteligíveis e sentenças que parecem ter sido cuspidas por um oráculo disléxico, um internauta ergue-se com um questionamento solene sobre rigor acadêmico e ensaios filosóficos. Ele argumenta que não é necessário o rótulo de "acadêmico" para que um livro seja coerente. E eu, num sobressalto, me pergunto se, naquele vídeo fatídico, eu havia me descuidado e passado a falar aramaico sem perceber. Verifico. Não. Estava em português mesmo.
Percebo, enfim, que meu interlocutor toca de leve, sem perceber e sem intenção, num problema que jaz numa caverna onde habita um certo velhinho conhecido, um filósofo solitário, que provou ao mundo ser possível pensar sem portar um diploma. O que ele não previu – e provavelmente teria rido, se previsse – é que isso levaria uma legião de estúpidos a crer que a ausência de diploma é a fórmula mágica da genialidade. E assim, como num encantamento reverso, instituiu-se a crença de que não saber latim é um sinal de sabedoria, enquanto toda erudição tornou-se suspeita.
Os habitantes desta caverna encantada não são capazes de compreender que o embate entre “rigor acadêmico” e “produção intelectual livre” não é uma batalha entre a verdade e o engodo, mas sim uma disputa entre duas formas distintas de abordar a própria verdade.
Um livro acadêmico não é um papiro mágico que confere infalibilidade a seu autor, mas um esforço deliberado para aprofundar, sistematizar e disseminar conhecimento com um rigor metodológico, uma precisão conceitual e um compromisso incômodo com a veracidade dos fatos e argumentos. Por outro lado, o ensaio filosófico, mais errante e aventureiro, busca o mesmo tesouro, mas sem se prender a mapas cartografados.
É verdade, (lógico que é verdade, por Deus!), que os maiores livros filosóficos já escritos não são acadêmicos (aliás, nem mesmo escritos, no caso de Sócrates). O que distingue a literatura ensaística, romanesca e calabresa do livro acadêmico é única e exclusivamente a forma. Ninguém, exceto talvez meu estagiário, sairia no tapa para defender que a forma é uma condicionante da busca da verdade.
O que aflige vossos corações não é o método, mas a panfletagem. Pois é o panfleto, essa criatura astuta e traiçoeira, se infiltra nesse debate se aproveitando das sombras projetadas. O panfleto não deseja meramente expor argumentos ou explorar uma questão sob múltiplas facetas; ele quer persuadir, converter, incendiar. Ele não se contenta em esclarecer; quer sacudir os mornos e insuflar os já convencidos. À imparcialidade meticulosa de uma busca filosófica, ele contrapõe a veemência de um chamado às armas. Não raro, a retórica toma o lugar da dialética, e a indignação se sobrepõe à serenidade da análise.
Nas sombras, o panfleto geralmente se traveste de “acadêmico”, e não de “ensaísta”, pois é mais facil enganar os pobres coitados imitando o método científico do que a prosa divinamente inspirada. Ele não sabe o que é revisão de literatura, bibliografia, fontes, referências ou hipótese central. Não sabe usar um banco de dados ou desenvolver uma tese. Mas usando este pronome e seus jargões, o panfleto espalha que está fazendo uma análise, enquanto na verdade é um mero instrumento de persuasão ideológica.
Ouvindo o discurso delx, o leitor incauto pode, por um instante, sentir-se iluminado por um clarão de lucidez repentina, como quem esbarra num letreiro de neon depois de muito tempo na escuridão. Mas, ao examinar mais de perto, perceberá que a luz não o conduz para fora da caverna, mas apenas para outra camada dela, outro dogma ainda mais intransponível.
E, justamente por isso, jamais poderá ser considerado uma obra de autoridade intelectual. Pois, como diz aquele mesmo velhinho, “a autoridade intelectual é baseada numa visão implacavelmente realista e no exercício constante de um julgamento crítico severo, sem ranhetices, mas também sem concessões paternais”.
A questão, portanto, não é tanto demonstrar que o livro é horrível porque seu autor não sabe fazer uma citação, ou porque atropela a questão principal para lançar argumentos pessoais porcamente enjambrados. É perceber sua horroridade em razão de tentar fazer tudo isso para ser levado a sério.
Mas o velhinho já morreu, descansa em paz. Fez muito, mas não foi capaz de fazer tudo. E nós (ah, maldito, foi sozinho) ficamos para trás e agora somos obrigados a acompanhar o show de luzes e a música infernal que acompanha mais este episódio do espetáculo da estupidez.
Seus textos andam cada vez mais precisos e mais bonitos, daqueles que dão gosto de ler.
É um luxo pode ler seus textos e análises, concordando com o Lucas J, seus textos "dão gosto de ler"🙏🏻🫶🏻