A besta apocalíptica foi neutralizada
Mas descrições inúteis só servem para causar mais confusão
Uma viúva chorava na beira da cova, inconsolável:
- Me leve com você, amor!
Mas, ao jogar uma rosa, tropeça e cai na cova. No que começa, então, a gritar desesperadamente:
- Me tira daqui, por favor!
Em meu leito de sono, resolvo abrir meu grupo de estudos e, diante dos meus olhos, em plena sexta-feira, sou obrigada a receber mais uma vez a maldição do bêbado e do caixão. Minhas alunas, queridas, me obrigam a ler o lamento de uma venerável, que exclama, em dor profunda: o defunto não está morto!
Levanto da cama, pego um café expresso já na calada da noite, e continuo a ler as lamentações fúnebres tradicionais. Dessa vez, são seguidas de “não está morto, eu afirmo! Ele só foi transformado, tensionado e apropriado por forças que o esvaziaram”. É um drama tão convincente que dou uma espiada no caixão ao lado da mesa para saber se a criatura ali não é, na verdade, uma boneca inflável.
Talvez porque essa venerável ainda esteja de luto não tenha percebido que a autora que citou — para sustentar a coisa toda da boneca inflável — tenha escrito, depois do artigo inaugural da discussão sobre o pós-feminismo, o livro The Aftermath of Feminism. E que nele sustenta que o feminismo foi absorvido, neutralizado e reconfigurado pelo neoliberalismo. Assim reconfigurado, ela identifica que o então atual estado de coisas na América era tal que feminismo era visto uma «coisa do passado». Alguns anos depois, analisando a jornada do movimento no novo milênio, ela lamentaria ainda a ausência de um aparato cultural que permitisse a expressão da raiva feminina (lamenta, em outros termos, o fim do feminismo).
Eu, que já explorei a morte do feminismo no discurso público americano — para além, claro, do teórico — identifiquei por todos os lados o desespero das feministas da velha guarda. Aquele momento vivo não existe mais, todas concordam, restam espectros e, de forma geral, um pânico estético.
Susan Faludi, famosa por cunhar o termo Backlash feminista e por classificar todos aqueles que destoavam da ortodoxia como heréticas que mereciam fogueira, reconhece, em recente entrevista para o The New York Times, que as feministas estão em apuros:
(…) o artigo The future isn’t female anymore, publicado pelo mesmo jornal, revela uma situação completamente diferente. Não há mais chamados messiânicos, nem vozes brancas inglesas. Há, pelo contrário, o reconhecimento de que a guerra foi perdida de uma forma mais profunda, “uma sensação ambiente de que o feminismo foi esvaziado de vitalidade cultural”.1
Por um lado, é natural que feministas da velha guarda, como Faludi e McRobbie, lamentem o fim desse aparato, e escrevam para impulsionar novas mulheres a reviver o defunto (It’s not dead yet!). Um pouco menos natural é observar uma contrarrevolucionária sustentando o mesmo, “me leve com você, amor!”.
Reflito, no entanto, que se há certos gostos pessoais mórbidos, cabe a Deus julgar.
Mórbidos ou não, n.b., o que poderia ser esse «feminismo» que, mesmo transformado, tensionado, esvaziado, absorvido, neutralizado e reconfigurado (ai, pai, para!), é ainda capaz de causar tanta confusão? Afinal, é possível unificar o feminismo sob uma única definição ou ele permanece essencialmente fluido?
Uma leitura singela que pode nos ajudar é o ensaio Representação e Existência, que está no clássico The New Science of Politics. Nele, Eric Voegelin argumenta que a teoria política sempre surge dentro de uma sociedade que já possui um simbolismo estruturado, com seus ritos, mitos e doutrinas. Esse simbolismo dá sentido à estrutura interna da comunidade, às relações entre seus membros e à maneira como ela interpreta a existência humana. Em outras palavras, há uma autorreflexão coletiva expressa nesses símbolos, que traduzem a realidade social vivida.
Voegelin afirma que isso não apenas é inevitável, mas necessário: a criação simbólica está enraizada na própria condição humana. E esses símbolos, por sua vez, expressam o homem em sua totalidade, na medida em que ele participa de algo maior do que sua existência individual. É essa inserção na coletividade que o torna um ser político, alguém que só realiza plenamente sua natureza vivendo em sociedade.
A ciência política, portanto, não nasce do éter, mas como tentativa de organizar e tornar inteligíveis esses símbolos e suas conexões com a vida social. É uma forma de interpretar e classificar a experiência humana a partir daquilo que já está simbolicamente dado para fins úteis.
Aristóteles, por exemplo, visitou inúmeras cidades gregas, observou como eram governadas e, com base nos padrões recorrentes, formulou categorias políticas. Foi assim que definiu os regimes monárquico, democrático e outros, avaliando suas qualidades com base na realidade observada. A partir dessas análises, ele deduziu uma forma ideal de governo — o Governo Constitucional. Ele não inventou a ciência política; ele apenas tornou mais nítido o que já existia. Seu trabalho consistiu em identificar os elementos essenciais da vida em comunidade, organizá-los e classificá-los, dando forma àquilo que entendemos como ciência.
Mas nesse processo, inevitavelmente, o cientista político cria uma nova linguagem: a linguagem política. Por exemplo, uma «lei em sentido estrito» não é algo que surja espontaneamente, como se a comunidade simplesmente se desse conta de sua existência. Trata-se de uma construção conceitual, um nome atribuído a um arranjo simbólico.
Assim, passamos a ter duas linguagens sobrepostas. Na tradição clássica, essas duas linguagens estão intimamente ligadas. Se uma teoria política não reflete a organização simbólica real da sociedade, ela perde sua validade. A ciência política só cumpre seu papel quando serve para esclarecer, ordenar e tornar inteligíveis os símbolos já existentes na vida social. Sua utilidade não é meramente prática, mas epistemológica: ela é um instrumento de compreensão da realidade simbólica.
A questão se torna cada vez mais complexa porque é possível utilizar categorias da ciência política aristotélica para analisar outras linguagens políticas que se apresentam como universais ou autossuficientes. Por exemplo, ao afirmar que o marxismo é um movimento imanente com pretensões escatológicas — ou seja, que busca instaurar o paraíso na terra —, estou empregando uma linguagem que não pertence ao próprio marxismo, mas sim à ciência política. Termos como "imanência" e "escatologia" não fazem parte da teoria marxista em si, mas permitem descrevê-la a partir de um vocabulário político mais amplo.
Contudo, com o advento da modernidade, surgem correntes na ciência política que acreditam ser possível formular teorias puramente analíticas, sem recorrer a categorias simbólicas. Supõe-se que se possa criar, por exemplo, modelos de governo apenas pela razão, como se fosse possível construir uma teoria no vácuo — é o caso do pensamento de John Locke.
Tome-se o exemplo do que fazem com o «fascismo». O analista moderno pesquisa sua história, descreve sua origem na Itália, seus líderes, ações e consequências. Isso, porém, é apenas uma narrativa factual. Estamos lidando com descrições, não com a essência do fenômeno.
Desse modo, nunca se chega a compreender o fascismo como um ente com sentido próprio.2 O que se conhece é sua manifestação no mundo material, seus efeitos. A ciência política moderna analítica limita-se a isso e considera suficiente esse nível de compreensão.
Por isso que, quando pediam a Eric Voegelin uma definição do fascismo, ele recusava oferecê-la em termos analíticos. Acreditava que esse tipo de movimento possui uma essência e um simbolismo próprios, que precisam ser compreendidos dentro de uma realidade mais ampla. Só assim tais conceitos se tornam úteis à ciência política.
Para além disso, Voegelin afirma que é preciso distinguir, com muito cuidado, os conceitos teóricos dos simbolismos que fazem parte da realidade, especialmente na transição entre a experiência vivida e a formulação teórica. O critério usado para essa clarificação deve estar bem definido, e o valor cognitivo dos conceitos resultantes precisa ser testado dentro de um quadro teórico mais amplo.
No caso da definição de feminismo que proponho, por exemplo, ela precisa ser aplicada e validada no discurso real. Ou seja, deve funcionar para qualquer teoria que seja reconhecida como feminista — ou ao menos para a maioria delas — e para afastar aquilo que não é, revelando-se útil na prática interpretativa. Esse é, afinal, um procedimento tipicamente aristotélico.
Sigo o exemplo de Voegelin: não se trata de má vontade, mas de reconhecer a complexidade. O feminismo é um fenômeno simbólico e enraizado na realidade, e tentar reduzi-lo a uma definição simples só gera confusão. E quando alguém tenta fazer isso, normalmente erra no essencial.
Por exemplo, pode-se dizer, com certeza, que «o feminismo é, por definição, uma rebelião organizada contra a ordem natural e contra Deus». Mas essa afirmação, embora possa conter uma verdade, é inútil como definição, pois é imprestável para a ciência política — afinal, muita coisa pode ser descrita como uma revolta contra Deus e corre-se o risco de classificar como feminismo qualquer mulher mais esquentadinha com a justiça divina.
Outros elementos apresentados, como «uma revolta contra Deus mediada pela revolução sexual», seguem o mesmo problema: tratam apenas de desdobramentos secundários do fenômeno.3 Continuam sendo descrições, não definições. Apontam consequências, não causas primeiras.
É facil provar que não temos um sólido seguro a partir dessa proposta. Basta observar que a mesma venerável afirma num dia que “embora o feminismo reúna diversas vertentes e abordagens, ele pode ser analisado como um sistema de pensamento estruturado”, e no outro que “o feminismo não é um corpo fechado de doutrinas, mas um movimento vivo em disputa consigo mesmo.”
Esse fenômeno de contradições abertas acontece porque a abordagem permanece no campo da doxa — opinião não depurada. O processo de depuração conceitual exige que quem propõe uma definição a refine. A partir dessa proposição primária oferecida, deve-se separar o essencial do acidental, “até delimitar aquelas condições sem as quais o objeto em discussão não poderia ser o que é”. 4
Aprofundando a investigação, dialeticamente, se alguém dissesse que feminismo é uma revolta contra Deus, a pergunta imediata seria: Eva seria então feminista?
Portanto, uma definição só se torna útil quando é capaz de identificar elementos unificadores do movimento — e isso em nível metafísico. Esses elementos, quando claramente formulados, podem fundamentar uma análise política eficaz. No caso do feminismo, essa tarefa é particularmente difícil.
É louvável o esforço que muitas veneráveis vêm fazendo para entrar no jogo na questão feminina, principalmente a partir das primeiras tentativas de definição. Mas se essas mulheres são, com orgulho, alunas do velhinho da Virgínia há tantos anos, creio que posso puxar certas orelhas com mais veemência que outras. Pois se há algo que aquele bom filósofo reforçava é que «a arte do dói um tapinha não dói» precisa começar pelo Quid. E quinze anos é tempo suficiente para aprender a primeira lição.
Alez, alez!; pois o coveiro já está ficando sem paciência. Se forem pular na cova, o façam de uma vez. Saibam, contudo, que pedir socorro não vai adiantar muito: não há Escada do lado de lá.
Luciano, D. Autópsia do Feminismo. Ed. Caravelas, 2025, p. 324.
Somente Augusto Del Noce foi capaz dessa façanha.
E, como já expliquei, nem toda feminista tem a revolução sexual como meio para superar o Eterno Feminino. Essa fixação em sexo, que tem a contrarrevolução, é algo para ser analisado por pesquisadores posteriores.
Carvalho, O. Como vencer um debate sem ter razão. Auster, 2019,p. 43.
Eu não consigo mais acompanhar.
Venerável?
Foda-se!
Vou ler o livro, que deve chegar em breve, e encerrar minha temporada de pitacos.
Adorei esse final 😳😳😳❤️❤️❤️ Nossa Senhora, rogai por nós 🙏🏼🙏🏼🙏🏼