Eu voltei ao catolicismo por vários motivos, mas o principal deles se mostrou da forma mais simples possível. Ocorreu uma mudança dentro da minha alma enquanto eu ouvia, despretensiosamente, um podcast do Olivertalk. E era um episódio comum que, por si só, não tinha nada demais. Os âncoras somente descreviam algo sabido, como o infanticídio era uma prática banal no mundo antigo: vou ali comprar um pão, sacrifico meu primogênito, volto para terminar de varrer o quintal.
Claro que eu sabia que o sacrifício de bebês ocorria para fins ritualísticos, eugenia ou controle populacional. Ouvira alguma coisa sobre o assunto nos documentários britânicos. Mas, naquele momento, não foi a existência da prática, e sim sua natureza ordinária e cotidiana, que finalmente se revelaram para mim. Não se tratava de uma exceção de uma tribo perdida da Papa Nova Guiné, era a regra.
Um apontamento, contudo, foi o responsável pela grande mudança de chave em meu coração. Os âncoras mencionaram que, dentro deste contexto antigo, um deus pedir o sacrifício de um filho era lugar-comum. Revolucionário e extraordinário seria Deus substituir este sacrifício por um cordeiro.
Eu já era mãe. E era precisamente a história de Abraão e Isaac que me impedia de cruzar de forma definitiva o umbral da fé. Como poderia um Deus de amor pedir um filho em holocausto? Que justiça haveria nisso, que propósito, que luz? A angústia da Mater Dolorosa me era insuportável porque, no fundo, eu não percebia estar julgando Abraão com meus próprios princípios de justiça que seu Deus que fornecera.
Relembro este dia enquanto leio Margaret Sanger e sua magnum opus, Woman and the new race. Lembro porque aqui encontro uma defesa apaixonada do infanticídio como costumeiro, uma defesa da legitimidade dos tempos antigos, e há algo de fantasmagórico na segurança científica com que ela escreve.
Assim como os âncoras daquele postcast, Sanger descreve como todos os povos que já cruzaram a terra - bárbaros, semi-civilizados, e mesmo os habitantes dos mais requintados Impérios da Antiguidade - eram infanticidas. Mas, longe de afastar esta conduta como algo bárbaro, Sanger defende que "seguindo essa mesma tendência em países civilizados, encontramos o infanticídio sendo tanto defendido por filósofos e autorizado por lei, como na Grécia e em Roma, quanto amplamente praticado, apesar da lei, tanto civil quanto eclesiástica".
Segundo ela, foi a Igreja Católica a responsável por criminalizar esta prática que, até então, sempre fora algo perfeitamente aceitável e desejável. E, como prova de seus argumentos, oferece o fato de que foi muito difícil “fazer pegar” a lei que proibia o assassinato e bebês1.
Por caminhos tortuosos, portanto, Margaret Sanger, eu e os âncoras do podcast católico chegamos à mesma conclusão: a Revolução da Cruz criou uma nova moralidade. E esta moralidade, ao contrário de tantas que a precederam, fez do infanticídio um horror impensável.
A diferença, contudo, está nos olhos com que contemplamos esse feito. Para mim e para os âncoras do podcast, essa revolução é a alvorada de uma justiça real, um raio de sol que dissipou as trevas de um mundo onde os mais fracos eram os primeiros a serem imolados. Para Sanger, no entanto, essa luz não é uma bênção, mas um erro – uma tentativa de conter o que ela enxerga como um impulso natural, algo tão irresistível quanto a maré:
Impulsionadas pela força irresistível dentro delas, as mulheres sempre buscarão uma liberdade maior e um maior autodesenvolvimento, independentemente do custo. A única questão que a sociedade precisa responder é: como as mulheres deverão ser permitidas a alcançar esse objetivo?
Mas aqui eu peço licença, e talvez um pouco de paciência, para fazer algo que não se faz mais em tempos de atenção de peixinhos dourados: cavar além da superfície. Pois é muito fácil despachar Sanger com um gesto de desdém, como se suas palavras não passassem de um espasmo de revolta contra um Deus que ela nunca conheceu. E seria tentador reduzir sua filosofia ao caldo venenoso do eugenismo que permeava sua época.2
Peço licença e paciência, pois, diferente de algumas madames, Margaret Sanger não falava a partir de uma torre de marfim, nem construía suas ideias em salões acarpetados onde o sofrimento humano era apenas uma abstração. Ela era enfermeira. Caminhava pelas ruas escuras e fétidas das periferias industriais, onde a pobreza não era uma teoria econômica, mas um cheiro, um som, um peso esmagador. Ela viu mulheres morrerem como moscas, não apenas no parto, mas no lento e sórdido martírio de uma vida reduzida a parir e sofrer. Viu bebês mal-nascidos condenados a um mundo que parecia não querer alimentá-los. Viu a sífilis não como uma palavra, mas como rostos desfigurados e corpos apodrecendo em vida. Viu crianças sendo espancadas por mães exaustas, atormentadas por uma miséria que não lhes permitia sequer amar. Nada, veja bem, muito diferente do contexto de pobreza da periferia urbana brasileira3.
O risco de vivenciar algo assim, tão diretamente como ela o fez, é o mesmo risco de olhar para o abismo. A alma, que pode negar muito, mas não a si mesma, se rebela contra o mundo corrompido. Ao ser apresentado ao sofrimento e à injustiça, o revoltado sempre acaba por clamar pela morte do mundo.
Nesta situação, só pode haver dois universos possíveis para a mente humana: o do sagrado ou o da revolta4.
Escolhendo a revolta, Sanger acreditava ser um ato de misericórdia permitir às mulheres escolher os filhos que viverão e os que morrerão. Chamava isso de "maternidade voluntária", e como todo conceito revolucionário, vestia-se de promessas gloriosas. Sob esse regime, suas filhas não seriam entregues à injustiça e à prostituição; seus filhos não pereceriam na indústria ou nos campos de batalha. E, mais do que isso, num êxtase profético, Sanger anunciava que, quando a libertação feminina fosse finalmente consumada, a própria tragédia humana seria erradicada: escravidão infantil, prostituição, debilidade mental, deterioração física, fome, opressão e guerra desapareceriam da face da terra.
A Mater Dolorosa chora pelo filho inocente que foi assassinado. A revolta chora pelo filho inocente que não pode assassinar.
Não sei o quanto destas constatações realmente se comprovaram verdadeiras a partir de novos estudos antropológicos, mas isto não é importante neste momento. O que importa é que Sanger acreditava que o infanticídio era instintivo, na contramão do maternar, e que a responsável por sufocar esta prática foi a Igreja Católica.
Leia-se: apontando a aberta natureza eugenista da “mãe” do controle de natalidade.
Meu marido relata a frequência de bebês assassinados por suas próprias mães ao serem jogados no rio que atravessa a sua favela. Esta é uma conduta punida pelo tribunal do tráfico com pena de morte.
Este é o conceito da revolta, conforme venho falando, a partir de Albert Camus.
E pensar que aceitei o feminismo na adolescência de forma fácil e tinha acreditado que na verdade Deus era o diabo. Cheguei a inverter os papéis. Para mim fazia tanto sentido que queria partilhar com os outros a "verdade". Também defendi o aborto na sala de aula, convencendo até a professora que no começo parecia se opor.
Se não fosse o amor e a graça de Deus quando eu ainda era inimiga não estaria salva dessas mentiras satânicas. Obrigada, Jesus. Nunca poderei retribuir o que o amor de Deus fez por mim.
Obrigada também Debs pela sua dedicação a verdade e por nos deixar cada dia menos bocós.
O que será que tornam estas mulheres tão frias, tão perversas ao ponto de desumanizar bebês?
Não entra na minha cabeça. Ok, eu consigo entender o contexto de um estupro. Mas obviamente, não é o caso. Eu também não entendo esta relação que elas, as feministas, estabelecem entre liberdade e infanticídio. Na verdade,somos todos escravos de nossas paixões e nossas escolhas apaixonadas. A função primordial das relações sexuais, antes do prazer, é a reprodução. E não tem novidade alguma nisso. Agora, as feministas em defesa de um senso distorcido de Liberdade/autonomia vem dizer que a legalização universal do aborto, empodera/liberta a mulher? Se for da obrigação de pensar antes de agir, de controlar seus impulsos, talvez! Mas isto não seria igualmente uma forma de bestialização do ser humano, sobretudo das mulheres?