Nesta catedral o tempo flui em ritmo diferente
(É assim que se faz, ficou mais aceitável, talvez no terceiro fique melhor)
Antes da publicação do Autópsia do Feminismo, percebi que o debate público sobre a questão feminina — a querelle des femmes, como diziam os franceses — estava inviabilizado pela polarização rasteira entre feminismo e antifeminismo.
Essa constatação surgiu na fase final de elaboração do manuscrito, a partir de um desentendimento que tive com a filósofa neoplatônica Nathalia Sulman. No calor do embate, afirmei que suas publicações transbordavam de metafísica feminista. Ela, então, me confrontou com a pergunta: o que você entende por feminismo? Mais do que isso, transformou o debate em um espetáculo de erística. Ora, se ela — uma filósofa doutora em Platão — não estava consciente das categorias com as quais operava, não seria de esperar coisa melhor das outras não-filósofas soltas naquele matagal da revolta feminina.
Foi nesse contexto que julguei necessário ministrar algumas aulas introdutórias sobre o tema e preparei a primeira aula.
Se bem se lembram, a aula inaugural — “Existe mesmo esse bicho-papão chamado feminismo?” — começa exatamente com o problema da definição. Ali, tracei que o primeiro objetivo daquela guerra seria justamente ressaltar a importância do Quid?. Mostrar que as palavras têm significado, que as coisas têm essência — e que essa essência deveria ser resgatada.
Era preciso apontar que não podíamos continuar vociferando hinos de guerra sem saber contra quem estávamos lutando. Sob pena de estarmos gritando contra cadáveres já enterrados. E, ao fazer isso, ignorando o fato de que, pela retaguarda, se aproximavam novas bandeiras ainda mais sedentas e destrutivas.
Foi por isso que escolhi para o estandarte a frase “O feminismo está morto”. Não se tratava tanto de anunciar o fim de uma criatura moribunda, mas de impor, em pleno velório, a pergunta fundamental: Quem? Quem morreu, afinal? Está mesmo morto? Antes de determinar se ainda havia algum sopro de vida, a provocação obrigava os não-filósofos a encarar, mesmo a contragosto, o rosto do monstro.
Insisti no tema porque compreendi que, num cenário de barbárie, a única forma de sobreviver é ignorar as ofensas pessoais e reiterar, com persistência, o ponto central da discussão. Como nos ensina a arte da controvérsia:
Quando o adversário passa aos ataques pessoais, respondemos com calma que isso não tem nada a ver com o tema discutido e retornamos rapidamente a este e continuamos a demonstrar que objetivamente o adversário não tem razão, sem prestar atenção às suas ofensas; portanto, mais ou menos como diz Temístocles dirigindo-se a Euribíades: πάταξον μὲν ἄκουσον δέ (“bate, mas escuta”). Mas isto não é dado a todos.1
Essa foi a abordagem: pode bater, mas enquanto bate, escute. E bateram. Muito. E na mesma medida também escutaram. E eis o fato incontornável, senhores: aquilo que antes não passava de nota de rodapé virou abertura de novo panfleto antifeminista recém-publicado.2 A importância da definição — não ficou perfeita, mas já melhorou muito — foi, enfim, colocada em seu devido lugar. Agora há espaço, mesmo que tímido, para uma formação dialética aristótelica. E os novos capitães, com suas jangadinhas recém construídas, saberão aproveitar a brecha.
Cumprido o primeiro objetivo, quando o livro Autópsia do Feminismo chegar na casa do digníssimo leitor, ele já encontrará um campo que oferece, àqueles que de fato querem investigar a questão feminina, uma força de outra natureza. Uma força semelhante àquela que Goethe chamou de Eterno Feminino — que não nos atrai para baixo, à maneira da dialética negativa, mas para o alto:
Tudo o que é transitório
É apenas figura;
O inatingível
Aqui se torna ato;
O indescritível
Aqui é feito;
O Eterno Feminino
Nos atrai para o alto.
Longe do Espírito que sempre nega, ingressamos em um novo Tempo. Um tempo que não segue o compasso intransponível e esmagador da rotina. Ao destruir os templos enfumaçados, não encontramos uma tapera, mas uma catedral — ampla, repousando na meia-luz, muito além dos limites da revolta feminina. Não será fácil compreender como essa catedral foi erguida, nem que tempo ou espaço ela ocupa. Perdemos muito tempo — com o perdão do trocadilho inevitável — e é hora de começar a remar Em busca do tempo perdido:
Sobre o pedestal de um projeto que, pela tradição, é secular e remonta aos gregos, o romance de Proust ergue um enorme edifício que tem, em vez disso, uma origem bíblica e evangélica. E dentro dessa rede de intermináveis acontecimentos sociais, de infinitas tramas, tramas e mais tramas, ele situa uma pessoa, um eu, um sujeito cuja memória não pode ser contestada, que está ali para revelar a verdade convulsiva dessa história aparentemente verdadeira, para ‘arrancar-lhe suas centenas de máscaras’. Ele o convida a fazer o mesmo que ele faz. Leia-me, e você fará parte do mundo mas sem ser engolido por ele. Eu posso lhe dar a Divina Comédia da vida da psique, não apenas a minha, mas a sua também, a nossa, isto é, o absoluto.
Começamos a busca pelo Tempo, como uma catedral construída numa quarta dimensão. Pelo tempo sagrado, seus ciclos e mitos de renovação. Um conceito sem o qual não conseguiremos avançar. E, nesse sentido podemos dar Graças a Deus, pela pouca luz que já consegue entrar através dos vitrais deste edifício, podemos nos guiar.3
Schopenhauer, Arthur; Carvalho, Olavo. Como Vencer Um Debate Sem Precisar Ter Razão, Em 38 Estratagemas. Dialética Erística. Auster, 2019.
No livro Feminismo, perversão e subversão, de 2019, Ana Campagnolo foge do problema de definição, advogando por um feminismo fluido. No novo livro, a questão de definição estampa a primeira página; ver Não existe feminista cristã (ou era cristã feminista?).
Começaremos por Sagrado e Profano de Mircea Eliad.
“Logo que deixou de ser louco, tornou-se idiota. Há males de que não se deve buscar a cura porque só eles nos protegem contra males mais graves.”
Eu não compreendi esse lance da catedral e das luzes, evidentemente. Faz parte do mistério. En passant, parece um provável Livro III...
Proust é absolutamente magnético 🧲
O frisson desse livrinho que não chega, vou ler um compilado das melhores frases de Em Busca Do Tempo Perdido 🫵😎