A catedral do Tempo
Transcrição em forma de ensaio da aula ministrada ao vivo em Jul, 02 de 2025.
Mantenho comigo uma memória de infância. Eu tinha sete anos e estava com meus pais numa festa diurna, que provavelmente foi planejada para ser um churrasco com piscina, mas viu-se sabotada pelo céu encoberto que já deveria ter se retirado com as últimas águas de março.
Do evento me lembro somente de cenas soltas, como num filme amador. A música ruim da virada do milênio gritava em caixas de som estouradas, enquanto adultos dançavam de forma que me parecia profundamente imprópria. Uma senhora ameaçava, com solenidade trágica, que se a jogassem na piscina "deixaria tudo vermelho". Na minha mente mágica, tal aviso ganhava contornos misteriosos de feitiçaria.
Os fragmentos se tornam um pouco mais nítidos quando lembro da chuva. Uma chuva grossa, insistente, que invadia os quiosques. Meus sapatinhos ficaram encharcados, os pés gelados, e uma angústia silenciosa começou a subir por mim como se viesse das raízes do corpo. O frio começou a se misturar naquela espécie de angústia que, embora longe da existencial, também invade a alma de algumas crianças: eu quero ir embora daqui.
Quando enfim verbalizei esse desejo, recebi o previsível não. Mas, talvez tocada por minha insistência melancólica ou pelo desconforto evidente (e provavelmente enchi bastante o saco), minha mãe cedeu. Poderia ir embora. Sozinha.
Não sei como cheguei em casa. O que permanece é a cena seguinte, iluminada e reconfortante. Estava segura, já banhada por águas escaldantes, vestida de pijama macio, com minhas meias favoritas. Via desenhos na televisão, quieta e aquecida. O calor do banho e do cobertor tinham dissolvido não só a friagem da chuva como a angústia que a acompanhava. E foi ali, morna, que experimentei um milagre extraordinário, que ficou comigo até a memória se dissipar.
Mas a lembrança, como bem escreveu Proust, não nos chega inteira. Ela se mostra como «uma espécie de fragmento luminoso, recortado em meio a trevas indistintas, semelhante aos que a queima de fogos de artifício ou alguma projeção elétrica iluminam ou secionam num edifício onde as outras partes permanecem mergulhadas na noite.»1
Da mesma forma, o passado parece preso a um tempo linear que não poder ser resgatado sem transformá-lo em algo diferente do que foi realmente vivido. Evocá-lo pela memória, mais do que isso, também torna-se sempre uma tentativa vã, pois «ele está escondido fora do domínio e do alcance dela, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) de que nem suspeitamos”. É assim que “todas as vezes que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o que procura, é ao mesmo tempo a região obscura onde deve procurar e onde toda a sua bagagem não lhe servirá para nada. Procurar? Não apenas: criar. Está diante de algo que ainda não é, e que só ele pode tornar real, e depois trazer para a sua luz.»2
Por isso, aquele momento ficou guardado como um fragmento luminoso, sem forma nem causa, incapaz de ser narrado sem empobrecer. Durante anos, tentei decifrá-lo sem êxito, até que o abandonei num porão escuro e desordenado.
Foi só recentemente, ao voltar de um fim de semana na fazenda com minha família, que algo novo aconteceu. Tomei um banho quente, vesti meias confortáveis e me deitei. Era inverno outra vez, mas a repetição do cenário não bastava para reviver a cena antiga. Fiz exatamente o mesmo que fizera naquela tarde chuvosa, sim; mas tantas outras vezes desde então.
Só que, diferente dessas tantas outras vezes, eu não estava mais sozinha. Ali, embaixo da mesma coberta, estava meu filho. Pequeno e gordinho, ele se aninhou no meu colo e repousou a mão no meu rosto para adormecer. Instantaneamente fui invadida por aquele mesmo preenchimento da alma.
E antes que pudesse me alegrar por finalmente sentir, mais uma vez, aquele calor morno, notei que agora havia algo a mais. Aquela criança que outrora assistia desenhos, recém-saída da chuva, parecia um tipo — figura antecipada — da que agora repousava sobre mim. Como se o passado tivesse desenhado uma promessa, e o presente viesse cumpri-la. Na plenitude da promessa, o momento «imediatamente tornou as vicissitudes da vida indiferentes para mim, seus desastres, inofensivos, sua brevidade, ilusória, do mesmo modo que o amor age, enchendo-me de uma essência preciosa: ou melhor, essa essência não estava em mim, era eu. Parei de me sentir medíocre, contingente, mortal.»3
Naquele instante, o tempo linear se curvou diante do tempo sagrado. O calor da respiração do meu filho, seu peso leve, sua mãozinha no meu rosto, tudo isso deixou de ser apenas real para se tornar verdadeira. A minha e aquela criança estavam juntas, no mesmo quarto, protegidas sob o mesmo cobertor. Uma via desenhos e se curava do frio. A outra dormia, sem saber que era, para mim, a chave e a resposta.
Percebi que entrava numa meia-luz filtrada por vitrais gastos como se o tempo, ali, não tivesse apenas passado, mas repousado. Era uma claridade de vidro envelhecido, uma luz antiga de um sol invisível. E foi sob esse feixe solene que compreendi: estava «num edifício ocupando, pode-se dizer, um espaço de quatro dimensões — a quarta sendo a do Tempo —, estendendo através dos séculos a sua nave que, de vão em vão, de capela em capela, parecia vencer e transpor não apenas alguns metros, mas épocas sucessivas das quais emergia vitorioso.»4
Olhando suas abóbodas, pude recordar sobre como as catedrais são concebidas como espelho da Jerusalém celeste desde a antiguidade cristã. E reproduzem igualmente o Paraíso. As quatro partes do interior da igreja se abrem para as quatro direções do mundo. E o seu interior, com as luzes oscilantes, é o Universo. O altar é o paraíso, que foi transferido para o oriente e a porta imperial do altar denomina se também porta do paraíso. Era possível vislumbrá-la na semanada da Páscoa, aberta durante todo o serviço divino, como «Cristo ressurgiu do túmulo e abriu nos as portas do paraíso.»5
No entanto, ninguém pode permanecer por muito tempo nesse santuário da memória. Pois quanto mais se toma consciência de que se está dentro dele, mais esse templo se retrai e seus contornos se difundem. Sua claridade retorna para uma dimensão na qual somos apenas estrangeiros.
E então tudo se funde e se esvai, como acontece com os sonhos mais verdadeiros. O que permanece é apenas o rastro, o calor, um banco aquecido por alguém que já partiu. A cena do meu filho dormindo no meu colo se torna a mesma cena cotidiana. Mas isso basta. Porque ter estado ali transforma o modo como se caminha fora dali. É impossível esquecer a gravidade daquele lugar, mesmo que nunca mais se saiba como voltar.
Então percebo que aquela catedral é o espaço e tempo por excelência. Nela há uma verdade que só se revela à criança ou ao religioso: a de que o tempo é partido ao meio. Há o tempo que escorre pelas mãos, o tempo profano, feito de compromissos, calendários e horas vazias no trânsito. E há o Tempo sagrado.
É esse comportamento diante do Tempo que separa o homem religioso do homem profano. Há, para aquele, «os intervalos de Tempo sagrado, o tempo das festas; por outro lado, há o Tempo profano, a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso. Entre essas duas espécies de Tempo, existe, é claro, uma solução de continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso pode “passar”, sem perigo, da duração temporal ordinária para o Tempo sagrado.»6
Ele guarda a repetição do gesto primordial, da fundação do mundo. Como se ao reviver um cheiro ou gosto característico, uma canção ou um silêncio de infância, não estivéssemos voltando ao passado, mas voltado ao início. Isso porque o tempo sagrado é, por sua própria natureza, «reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. Toda festa religiosa, todo Tempo litúrgico, representa a reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, nos primórdios».7 De certo ponto de vista, o Tempo sagrado não flui.
Mesmo o homem que não perdeu a esperança da Nova Jerusalém, portanto, sofre em razão da contingência de nunca poder participar plenamente desse espaço-tempo sagrado. Reconhecer a «contingência», uma marca da natureza humana, é reconhecer essa limitação e precariedade. O fato de sermos finitos e temporais sempre significa não ser idênticos ao ideal, perfeito e extratemporal.
A certeza desse exílio é tão antiga quanto a própria consciência humana. Mesmo aquele que se considera senhor de sua própria alma em algum momento, mais cedo ou mais tarde, sentirá que está fora do lugar. Um Estrangeiro, errante em busca de «algo que foi perdido».
Esse é o «sofrimento vital», que atravessa a história da humanidade através da Idade de Ouro, aquelas grandes eras em que o ouro se converteu em ferro e a glória dos deuses em poeira dos mortais. Sempre há uma época dourada perdida, sempre há um lar do qual fomos arrancados e um caminho para casa que não conseguimos encontrar.
É desse sofrimento que falamos quando falamos sobre a revolta.
Proust, Marcel. Para o lado de Swann. 2023.
Ibid.
Ibid.
Ibid.
Eliad, Mircea. Sagrado e Profano. 1992.
Ibid.
Ibid.
Meu Deus! Débora, eu poderia falar sobre várias partes perfeitas desse texto. Mas essa aqui marcou:
“cena do meu filho dormindo no meu colo se torna a mesma cena cotidiana. Mas isso basta. Porque ter estado ali transforma o modo como se caminha fora dali. É impossível esquecer a gravidade daquele lugar, mesmo que nunca mais se saiba como voltar.”
Eu quero voltar para esse lugar! ♥️