Tropecei, naquele ontem, num desabafo de uma herege. Uma daquelas que, como eu, possui a carteirinha carimbada de excluída do clube da ortodoxia. Era sobre maternidade. Não havia motivação explícita, nem tese com aparato crítico, só um grito. Um daqueles que, nas redes sociais, toma a forma de comunicado urgente, como um bilhete lançado de uma cela: “alguém me ouve?”.
Já vi esse bilhete antes, pensei. Já ouvi esse grito — sussurrado ou histérico — muitas vezes nas páginas revoltas das escritoras femininas. E aprendi, com o tempo, a escutar antes de me escandalizar. Porque a revolta, quando quer se fazer ouvir, quase sempre estapeia o ouvinte. Por esse motivo, mesmo quando ela acerta em cheio, poucos têm coragem de continuar encarando depois da bofetada inicial.
Mas ali, ó senhores, ali havia uma revolta genuína. Tão genuína que foi logo apagada. Tão crua que precisou ser varrida do mapa, como se a honestidade fosse radioativa. Ela se insurgia contra aquele panfleto rosado que exalta a maternidade como se fosse um jardim de margaridas, enquanto omite as trincheiras, o sangue e os prantos. Chamava a maternidade de apologia ao esvaziamento feminino. Comparava a mulher a uma abelha-rainha, drenada até a última gota.
“As mulheres do passado”, ela gritava, “criavam os filhos em circunstâncias diferentes.” Aquela mulher (diferente de mim, que estou sozinha! Pode-se escutar o clamor silencioso) não estava “isolada em uma lata de sardinha, casada com um marido estupidamente passivo e incapaz de perceber que a louça deve ser lavada independentemente de ela pedir”.
Ora, pergunto: há mentira nisso? Se houver, por favor, joguem no lixo não só minhas palavras, mas também todas as bulas papais contra o liberalismo. Mas se não há mentira, então tratemos de encará-la, sem meias-luvas e sem suspensórios morais.
Ser mãe é uma desgraça. Nove meses transformada num sapo gordo e ofegante. Um parto que arranca o juízo pela raiz. E um recém-nascido que mama como se estivesse sugando a eternidade. O banho vira luxo, o sono um sonho e o silêncio um rumor mitológico. E aí, uma mulher com olheiras de escafandro lhe diz: “vale a pena no final”. Final? Qual final? Quando estiver morta? Não, obrigada. Melhor ir pra Disney.
A maternidade é o hystero, o núcleo da dor feminina. E essa dor é real demais para ser reciclada num comercial de fraldas. Tente sufocá-la e ela irromperá. Cale-a, e ela gritará. Esconda-a, e ela sairá pelas costuras. Porque a verdade sempre ressurge. As coisas reais têm uma mania chata de se forçar no meio da loucura.
Mas a desgraça é que a desgraça não está só no útero. O mundo, meus caros, é uma desgraça. E aqui dou a mão a Ivan Karamázov, que já fez esse serviço de descrever todas as inúmeras formas de sofrimento humano por mim, com mais brilho.
«A fortuna secunda et adversa é uma deusa cruel. Não pede permissão, não explica nada, não faz promessas. Apenas governa. E governa um mundo de opressão, escravidão, lágrimas e dificuldades, um mundo onde quem sofre não recebe justificativa, apenas a sentença. Aceitar o castigo sem razão não é apenas um sofrimento, é um horror demoníaco. Mesmo o mais santo dos homens treme diante da injustiça sem explicação. E, para aqueles que não sabem existir sem acreditar que merecem estar vivos, o sofrimento injustificado é insuportável.»1
Revoltar-se contra essa condição não é uma escolha, é uma urgência da alma. Um mundo completamente desgraçado é um mundo habitado por loucos. É necessário um Princípio, pois “aos olhos do revoltado, o que falta à dor do mundo, assim como aos seus instantes de felicidade, é um princípio de explicação”2. De forma que, em última instância, todo revoltado se revolta contra a morte.
É somente a partir desta ordem que o mundo, e por consequência a maternidade, serão ordenados. Somente assim serão santificados, redimidos. Mas nem sempre a busca pela racionalidade do mundo, contudo, significa cientificismo. Mais frequentemente, a resposta se mostrará em sua forma simbólica.3
E chegará, mais cedo ou mais tarde, o dia da tomada de consciência. Aquele momento exato em que até mesmo a mais aguerrida inimiga da maternidade será visitada por sua sombra. E não apenas ela: também aquelas que a vestem de linho orgânico, entre babadores franceses e promessas de parto humanizado, descobrirão que a maternidade, mesmo adornada, continua sendo o que sempre foi.
Dela não se escapa. Nem do seu sofrimento, nem da sua redenção. Porque ela não é um papel social, nem uma construção cultural. É uma experiência ontológica. E, quando ela chega, é com dor e com sangue. Lembro-me de quando fui parir meu filho — em carne viva, como convém aos grandes mitos. Minha tia, mulher de poucas ilusões e muitos partos, olhou-me com uma ternura cruel e disse: “quando voltar do inferno, eu te faço um bolo.”
É nessa maternidade que reside o poder. O poder de encarar a morte de frente — e voltar. E voltar quantas vezes for preciso. A verdadeira autoridade feminina nasce ali. Nasce da guerra. Uma guerra onde não há glória visível, mas há vitória. E só há uma chance de vitória: uma desgraça, tornada graça pela mulher que é Gratia Plena.
Na Mater Dolorosa está o poder da mulher que não está aprisionada às teias de uma tragédia grega, nem à roda impiedosa de uma Fortuna cega e zombeteira. Não. Ela carrega outra memória, outro sangue, outro clamor. Diferente de Níobe, ela pode se revoltar contra os céus e clamar por Justiça.
No drama do Calvário, a Mater Dolorosa amplifica essa angústia que ultrapassa o luto individual: ela acolhe não apenas as mães que perderam seus filhos, mas também aquelas que se compadecem das que os perderam, e ainda aquelas que sofrem diante da possibilidade, sempre latente, de gerar filhos em um mundo ferido, marcado pela maldição e pela violência. “Quis est homo qui non fleret, matrem Christi si videret in tanto supplicio?”
A Virgem Maria — que teve a alma traspassada como espada — não é um ícone para contemplação estética. É uma figura de fogo. Como até mesmo algumas protestantes escandalizadas foram obrigadas a reconhecer, ela é: Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum: benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Iesus.
Ela é a mulher temível. A imagem invertida de Eva. Se Eva foi a porta da danação, Maria é a da salvação. Se Eva escutou a serpente, Maria a esmaga sob os pés. E não é por ser esposa ou virgem que ela é poderosa. É por ser mãe. “Eu sou a serva do Senhor.” Com essa frase, o mundo virou de ponta-cabeça. Pela primeira vez na história, a mãe ajoelha-se diante do filho. Não por imposição, mas por liberdade. Reconhece sua inferioridade — e, por isso mesmo, revela sua majestade.4
Mas cuidado — não confunda. O chamado da Mater Dolorosa não é um convite a brincar de boneca em nome da fé. Não é um perfil no Instagram com vestidos longos e citações sobre “modéstia interior”. Não é uma cartilha ilustrada de como sofrer com graça e sair perfumada do deserto. O chamado da Mãe Dolorosa é uma catástrofe. E, porque não há nele meias-verdades, ele escandaliza. Escandaliza os judeus, loucura para os gentios. Não há decoro, nem glamour, nem metáfora confortável. Há só uma mãe, em pé, diante da cruz.
E é justamente por isso que os movimentos de revolta não suportam encará-la. Porque levar a revolta até o fim exige coragem para aceitar não apenas a dor, mas o sentido da dor. Exige admitir que há uma Justiça maior, que não somos deuses, e que talvez — horror dos horrores — o caminho da redenção passe por ajoelhar-se. O revoltado tem medo, é um covarde que não é capaz de ser um verdadeiro rebelde.
«A maioria prefere permanecer no jogo, ainda que o tabuleiro esteja envenenado, porque é mais fácil, e mais doce, atribuir o sofrimento a um acaso, um feitiço mal lançado, um deslize nos ritos — algo que possa ser corrigido com uma oferenda, uma reza dita da maneira certa. Um sacrifício de sangue.»5
Preso nas teias pegajosas da matéria, do simulacro e do medo, o revoltado moderno arrasta-se como quem crê piamente que pode escapar do sofrimento através da engenharia. Implora por úteros artificiais como quem oferece sacrifícios a deuses de plástico — na esperança de que a dor obedeça à tecnologia. Ou, então, reveste o sofrimento com rendas e palavras doces, emula um romantismo asséptico, perfuma o luto, como quem vende incenso em cemitério.
Mas eis o dilema: se ficar, o bicho pega. Se correr, o bicho come. E então, a pergunta continua: você é uma mulher, ou é um rato?
“Ain, eu sou um rato...”
Então vá pra Disney.
Luciano, D; Autópsia do Feminismo, p. 33.
Camus; O Homem Revoltado, p. 42.
A forma de representação peculiar ao inconsciente não é a da mente consciente. Ela tampouco tenta ou é capaz de capturar o que está à frente e definir seus objetos por meio de uma série de explicações discursivas, reduzindo-os à clareza por meio da análise lógica. O caminho do inconsciente é diferente. Os símbolos se reúnem em torno daquilo que precisa ser explicado, compreendido, interpretado. Neumann, The Origins and History of Conscience, p. 7.
Beauvoir, Segundo Sexo, p. 234-237.
Luciano, D. Autópsia do Feminismo, p. 48.
Vi uma fração dessa disputa nas redes sociais.
Esses dois comportamentos - da feminista de cabelo colorido que garante a felicidade sem a "opção" de ser mãe, e o da santinha modesta que glamorize até as fraldas esmerdeadas e que não sabe fazer um pudim - deixam Bel claro que o drama que descreveu nesse artigo é absolutamente mal compreendido.
Ontem, no feriado, recebemos em casa a visita da família da namorada do meu filho do meio. A conta era: eu, minha esposa, meus dois filhos, três filhas e dois genros.
Deles, fora o casal, são nove filhos, uma com namorado, o mais velho com a esposa, um bebê de ano e meio e outra na barriga de seis meses.
Vinte e quatro pessoas ao todo, DUAS famílias.
Maternidade e paternidade sem glamour.
E todas aquelas crianças comendo como gafanhotos. Eu não vencia tirar carne da churrasqueira.
Por isso me é tão cara essa temática que tem trazido, Debs.
Porque eu sei como é "o outro lado", quero dizer, o que é real nessa luta contra a maternidade, e conheço bem.
Nossa Senhora Das Dores tem sete espadas no peito e é co-redentora da humanidade, sem revolta, sem glamour.
Quando nasceu meu filho mais novo há pouco mais de doze anos, foi "necessário" fazer uma laqueadura. Após seis gestações e cinco cesarianas, o risco de morte numa futura gravidez seria altíssimo e, como médico professor, tinha autoridade para recomendar fortemente a intervenção, a qual esterilizou minha esposa para sempre. E nos arrependemos daquela decisão até hoje...
Sou tido como um homem teórico, porque respeito muito a erudição e considero a grande contribuição dos pensadores. Mas o senso prático, os pés calcados na Realidade me dão base para acompanhar tua saga ainda "sem lugar de fala", Inda que eu seja um macho escroto, como outro dia me homenagearam aqui na rede limpinha do Substack.
Uau, bem na minha gestação, tenho sido sortuda por receber um conteúdo desses, obrigada 🙏 Salve Rainha!